sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Crônica empoeirada dos Olhos Azuis

Nunca escrevi em diários apesar de ter uma boa memória pra datas e nomes, é engraçado como eles nunca vem em mente ao mesmo tempo. Lembro, por exemplo, do nome de minha primeira bicicleta, uma Caloi Freestyle azul. Mas não lembro o ano em que aprendi a pedalar nela. Se fizer contas e associar esse ou aquele acontecimento, talvez eu chegue a um valor aproximado, 88 ou 89 talvez. De verdade, não sei dizer. Lembro que a bicicleta era originalmente azul e com o tempo, foi pintada de preto. Ao contrario da minha primeira bateria que originalmente era preta e foi pintada de azul. As lembranças são um pouco assim, mudam de lugar, se reinventam, mas continuam as mesmas. Assim como meu primeiro contra baixo era cinza e foi pintado de preto e azul. Seguir viagem, seja remando ou levado pela correnteza. Essas lembranças nunca cansam. É engraçado como a vida parece mesmo uma roda gigante, com todos esses efeitos cíclicos, que vão e voltam, mas sempre deixando um ou outro detalhe em foco nítido.

Naquela época eu não queria ser médico ou astronauta, queria ser o Indiana Jones. Essa era a profissão dos meus sonhos. Nunca tive talento pro futebol e por isso nunca passou pela minha cabeça ser jogador. Nem era tão fã de futebol também, era difícil esse assunto. Eu já torcia pelo Grêmio, o time que veste azul. Na rua onde eu morava todo mundo torcia pro flamengo, e isso era seguro, não contrariar os mais velhos, (intolerância infantil é sempre grave). Em casa a única pessoa que às vezes falava de futebol era minha mãe, colorada. Lembro vagamente de uma camiseta do Flamengo e uma do Inter na gaveta, mas não lembro de ter usado alguma delas. Memória seletiva talvez, ou alguma predileção misteriosa pelo azul.

Lembro da primeira vez que fui seduzido por uma guria, e seus magnéticos olhos azuis. Era o primeiro dia de aula na 1º serie. Ela chegou atrasada, chamava-se Cecília e tinha um olhar que... Que provavelmente não dizia nada. Era só uma criança de 7 anos, assim como eu. Mas eu lembro, sonhei acordado com Cecília durante algum tempo. Na minha inocente ilusão de criança, pensava que um dia casaria com ela e seriamos felizes pra sempre. Mudei de escola e acabei substituindo Cecília por alguma outra guria, de olhos azuis ou não. Crianças têm planos estranhos às vezes e a ingenuidade os torna preciosos tesouros, mesmo que só na memória.

Os olhos azuis de Cecília se desfizeram da minha memória com o tempo, é justo, o tempo é alcalino sobre nossas lembranças de latão, e assim tudo enferruja até se desfazer. A irracional e involuntária preferência pelo azul ficou. Brincando com as lembranças, recordo de um quadro com a imagem de Jesus na parede do quarto de minha avó. Era a imagem definitiva de um cara realmente poderoso, dono da maior multinacional do mundo. Um tipo sério, com cabelo e barba grande e indefectíveis olhos azuis. Talvez essa seja uma associação perigosa pra uma criança, já que por muito tempo associei olhos azuis a um inexplicável poder.

Uma vez me disseram que eu tinha um olhar igual o do Paul. Se não a única, foi a melhor cantada que já recebi. Mas acho que no fundo não foi uma cantada, então melhor deixar pra lá. Na época não entendi o que tinha de especial em ter um "olhar de Paul", se no fundo, quem saiu ganhando foi meu colega que tinha um olhar de Kurt Cobain. Maldito Cobain... Será que havia alguma coisa nele alem dos olhos azuis.? Pra mim parecia injusto imaginar que meu olhar de Paul não fazia frente ao olhos azuis de Kurt Cobain. Era injusto como entrar a cavalo, em uma corrida de super motos.

Há algum tempo rolou uma brincadeira interessante com uma amiga muito especial. O trato era de que escrevêssemos sobre olhos azuis. Eu havia esquecido do trato, lembrei por acaso lendo textos do Gessinger. O trato era escrever algo pra semana seguinte, mas pelo jeito a semana seguinte não seguiu. Quando comecei escrever esta crônica, não tinha em mente o nosso trato de escrever e cumprir o combinado. Não será um trato justo já que ela, provavelmente não escreveu o texto e muito menos saberá que eu escrevi. Acho que mais importante que cumprir tratos, são todas estas lembranças, a clareza de que minha amiga de olhos azuis não tem o poder do Cristo no quadro da minha avó, tão pouco o simbolismo de Gessinger, Sinatra, Kurt Cobain ou de Cecília. Não foi por força ou poder que mantivemos nossos laços por tanto tempo. Talvez sejam só estas lembranças empoeiradas, que em algum momento mágico da vida, resolvemos compartilhar. Mas o tempo é alcalino demais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário