sábado, 16 de maio de 2015

Lembranças Nas Tampinhas de Garrafas

Que meus crimes e pecados só sejam julgados na mesa do bar, nunca antes do décimo segundo copo de cerveja. Afinal a mesa do bar é o único lugar onde toda história – Ou estória. Tem realmente alguma importância.

Mas não há como negar, escrever histórias ou memórias é sempre muito difícil quando as melhores noites terminam em um ‘fading’ de lembranças. Esse efeito estranho que desafia todas as leis da física chamada amnésia alcoólica. Acordar sem saber exatamente onde está é sempre um pouco assustador. Mas é preciso manter a calma e depois de localizadas as roupas, a porta de saída e um taxi, tudo fica mais confortável.

Então você imagina todas aquelas páginas que representam as últimas horas da noite anterior mas tudo que tem é um parágrafo de início e algumas pobres linhas no final. Triste, isso até poderia ser uma boa história pra contar na mesa do bar.

Há algum tempo nutro o hábito de guardar nos bolsos as tampinhas das garrafas de cerveja que bebi. Não sei exatamente quando comecei isso, mas às vezes esses pequenos detalhes fazem muita diferença. Quando não existem garrafas, no caso das cervejas on tap, um guardanapo com a marca do bar ou uma bolachinha de cerveja personalizada também serve. Souvenires? Não. Fragmentos de memória.

De um jeito tosco, há uma certa esperança em que as tampinhas das garrafas me ajudarão a lembrar o que bebi e isso já é um baita começo. No meio da bagunça do bolso da calça, um guardanapo pode me dizer por quais bares eu andei e, com alguma sorte, esses pequenos fragmentos de lembranças podem iluminar algum ponto obscuro daquilo que a memória insiste em esconder.

Nas vezes em que acordar em um lugar estranho é tão assustador que nem vale a pena tentar lembrar. Vale a pena saber quais bares evitar nos próximos dias. A ressaca moral é fiel companheira nessas horas.

Há também um lance muito singelo em encontrar tampinhas de boas cervejas no bolso dos casacos – Já que não sou do tipo que guarda dinheiro. A licença poética em inventar histórias sobre uma certa noite do inverno passado, devaneando flertes no balcão do bar. Flertes que terminam em camas tão estranhas, mas que por um acaso do destino não te permitem esquecer.

Que meus pecados sejam julgados sempre na mesa do bar, assim quem sabe, no dia seguinte eles façam parte dos capítulos esquecidos dessa história.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Não Pise no Meu Sapato de Veludo Azul

Desde criança tenho uma mania estranha: Não consigo dormir se a cortina não cobrir completamente todas as frestinhas da janela. Lembro exatamente do pavor que eu sentia se entrasse no meu quarto no meio da noite e encontrasse uma fresta mostrando a noite escura lá fora. Era sempre como se tivesse alguém ali me vigiando. O curioso é que nunca tive medo do escuro, o problema era essa ínfima possibilidade de estar sendo observado.

Mais que isso, era como se houvesse uma grande lente de aumento naquela pequena fresta, onde em algum lugar do mundo uma multidão de curiosos me observava. Uma espécie de Truman Show pela fresta da janela.

Apesar de ser filho único, cresci convivendo com a casa cheia de primos. E nessa convivência perdia-se um pouco dos critérios de individualidade. Eu morava com meus avós e tudo que era dos meus avós era também dos seus netos. Na cabeça dos meus tios, tudo que era meu consequentemente era dos meus avós e por isso, também de todos os netos.

Minha casa era uma ilha comunista de brinquedos, onde os visitantes sempre chegavam de mãos abanando.

Enfim, chamem de trauma de infância, mania ou de puro e simples egoísmo, mas hoje pouca coisa tem mais valor no meu mundinho, do que a minha privacidade. Esse é meu sapato de veludo azul e é melhor que ninguém pise nele.

Acho extremamente mesquinha essa necessidade que algumas pessoas têm de observar e calcular cada passo de outra pessoa. Tudo bem que pode parecer uma grande ironia esperar privacidade em um mundo onde deixamos pegadas virtuais por todos os lados. Mas isso não quer dizer que essas pegadas devam ser seguidas o tempo todo.

Relações de qualquer natureza não podem ser díspares, é absolutamente inaceitável que alguém queira saber ao teu respeito, coisas que não pode ou não quer mostrar.

Confesso que o efeito das frestas na cortina não me causa tanto pavor como quando eu era criança. Talvez esse Truman Show da minha cabeça tenha chegado ao fim. Mas cada vez que alguém tenta bisbilhotar por cima dos muros que construí, sinto-me profundamente agredido. E esse é o tipo de agressão que eu não tolero.

No fundo somos todos tão iguais. Iguais como sardinhas dentro de uma lata.

Você não precisa abrir lata por lata para escolher a sardinha que tá lá dentro, é pressuposto que sejam apenas sardinhas. Mas se você insistir em investigar lata por lata, no final, uma simples lata de sardinhas pode te custar caro demais.




quarta-feira, 9 de julho de 2014

No Galope do Acaso

Há quem não acredite no acaso. Eu me encanto com ele a cada movimento das peças sobre o tabuleiro.

O surfista que fica horas esperando a onda certa não sabe que horas ela virá. Não é um encontro romântico com hora certa. Não é uma sessão de cinema com lugar marcado. É apostar no acaso. É o feeling de quem conhece e respeita o mar, esperando a hora em que ele lhe retribuirá tal carinho.

Meu avô sempre dizia que o cavalo só passa encilhado uma vez. Na intenção de dizer "hey, aproveite as oportunidades". Talvez alguns desses cavalos, soltos pela coxilha, tenham sido encilhados pelo acaso.

Reza a lenda que Sir Isaac Newton estava tranquilamente sentado sob a sombra de uma macieira quando uma despretensiosa maça lhe caiu sobre a cabeça. Ok, é apenas um mito. Mas realmente foi observando a queda sempre perpendicular de uma maça que o levou a pensar a teoria gravitacional desenvolvendo a famosa lei da gravidade. O acaso dessa vez encilhou um cavalo que Newton não deixou de montar. Ou talvez por um instante ele fosse o surfista domando gentil a força do mar, na espera pela onda certa.

Sei que há mais que o acaso nisso, há no mundo tantas energias, frequências e sintonias que seria simplista e ingênuo colocar tudo na conta do acaso. Mas não são os deuses do destino que te fazem conhecer alguém legal caralho, num dia que tinha tudo pra ser chato pra caralho. Há muitos dias legais pra caralho e há muita gente chata pra caralho também. Mas há um prazer misterioso em imaginar que tu conheceu alguém que, ocasionalmente, tem uma avó que nasceu no mesmo lugar que a tua avó e que tem um avô que tinha o mesmo trabalho que o teu.

Ano passado sofri um acidente de moto e fraturei a perna. Nessa época eu morava em Curitiba e estava visitando minha mãe no interior do Paraná. A perna que eu quebrei tem uma grande tatuagem em alusão ao álbum The Wall, do Pink Floyd. Conversando com o ortopedista, depois do diagnostico, ele perguntou sobre a tatuagem e por fim descobri que ele também morava em Curitiba e que também estava no show do Roger Waters em Porto Alegre em Março de 2012. Nada demais, é de fato apenas um fragmento de uma história solta na minha memória, envolta na simplicidade do acaso de um acidente de moto.

Entender o acaso e aceita-lo como timoneiro não é tarefa simples, talvez nem seja uma questão de escolha também. A vida é sempre muito urgente de imediatismos. Quase sempre queremos tudo na ânsia da impaciência, tudo plug n play; Fast food; Just in time. Mas são coisas da juventude, quanto mais tempo se tem para viver, mais pressa se tem em viver tudo ao mesmo tempo. Como a urgência em fotografar o pôr do sol, antes mesmo de apreciar o pôr do sol. O registro do momento passa a ser mais importante que o momento.

Você que está lendo esse texto provavelmente não chegou até aqui por acaso. Mas talvez quando fechar o navegador, com esse ar de tempo perdido, por acaso entenda que há mais na vida que planos e projetos. Por mais que a areia da ampulheta corra urgente, ela irá sempre na mesma direção.

Tudo bem, não é exatamente o acaso que coloca o surfista na água e o faça paciente esperar a melhor onda. A probabilidade está do seu lado. Também não foi o acaso que inventou o pôr do sol e nem é ele quem derruba as maças. Talvez os cavalos do acaso pastem soltos pela coxilha sem cela, esperando alguém que lhes queira montar.

Quem sabe o acaso more no improvável instante em que tu não espera que nada relevante aconteça. E talvez o acaso morra toda vez que alguém tente explicar, de um jeito urgente e simplista, o que é o acaso.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Entre Metáforas e Quebra Cabeças

Talvez faça parte da natureza humana sentir-se velho na hora errada e consequentemente, sentir-se jovem na hora errada.

Um guri de 12 anos fala aos de 10 com ares de superioridade. É um velho aos olhos inexperientes de quem ainda não viveu mais de uma década. Da mesma forma me sinto velho, quando conto aos amigos mais jovens, de todas as coisas que já vivi, com ares de quem pode de alguma forma passar adiante esta pífia sabedoria de mesa de bar.

Velhos tem uma única obrigação na vida; Saber contar boas histórias.

E entre os velhos, alguns terão a fina habilidade de usar a metáfora.

Pois poucas coisas são tão encantadoras quanto as sutilezas da metáfora. Tudo fica mais bonito, embrulhado feito presente, em uma metáfora enfeitada. Grandes pensadores fizeram da metáfora exagerada os alicerces do seu trabalho. George Orwell, por exemplo, em "A Revolução dos Bichos" retratou todas as nuances da sociedade metaforizando a essência do ser humano. Também Neruda, comunista, politizado até os ossos, em seus mais singelos poemas de amor, metaforizava os preceitos políticos dos quais acreditava. E o que dizer de Kafka, que eternizou da forma mais nonsense possível a psique humana, na metáfora da transmutação.

Há tanta beleza em uma metáfora, quanto há naquele avermelhado pôr do sol. No vermelho da maça que muda destinos, seja Adão ou Newton seu nome. E assim como há sutileza no desabrochar de uma rosa rompendo o orvalho congelado sobre suas pétalas. Assim como a fúria do estrondoso trovão, que iluminou todo o céu com a força pura e natural de um raio.

Talvez sentir-se velho seja uma pequena metáfora também. Afinal sempre me sinto velho quando procuro lembranças. São tantas coisas amontoadas pelos cantos da minha cabeça, como em uma biblioteca muito antiga e empoeirada. Me sinto velho e cansado. As escadas que levam as lembranças nas prateleiras superiores fazem meus joelhos doerem. Ou me fazem imaginar que não vale a pena tentar.

Em meio às minhas mais belas metáforas, guardo alguns retratos teus escondidos em algum canto da minha memória. E quando isso falha, como quase todas as minhas boas lembranças, eu procuro em outros lugares. No fim das contas eu acabei associando teu rosto a quase tudo que me agrada.

Dessa vez foi um rótulo de cerveja, uma que eu disse que você iria gostar. Eu até disse os motivos mas você não deu bola. E eu entendo, afinal, já disse tantas coisas mesmo. Quase tudo que eu pensei e senti, na mesma desordem que pensei e senti. E no fim das contas aquele era mesmo eu, um quebra cabeças espalhado pelo chão de um quarto de hotel.

Eu sei que ás vezes falo demais, e que ás vezes espero que o mundo seja um pouco mais simples do que um quebra cabeças desconexo. Simples como teu sorriso.

Um dia, há muito tempo, eu tentei imaginar como seria fácil gostar de alguém. Mas algo gritava em meus ouvidos - Improvável.

Um dia sem querer, sem muitos planos ou expectativas, esse alguém deixou que eu entrasse pela porta. E esse velho, de All Star sujo e camiseta do Ramones, com os bolsos carregados de metáforas e devaneios, por algum motivo bobo te roubou um beijo. E eu nunca mais quis ir embora.

Agora, sem metáforas, precisa ir e não consegue.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

À Deriva

Do que são feitos os sonhos.?
Este qual não se precisa dormir. De alguma sutil matéria, invisível; Intocável. Misteriosa matéria, surgindo sempre que o desejo encontra abrigo em algum sorriso, nem sempre tão sincero quanto se espera.

No fundo somos todos iguais. Caravelas em mar aberto, sopradas puramente pelo desejo. E não há mentiras ou verdades; Vaidades ou culpas, capazes de ancorar esta nau.

Do que são feitos os medos então.?
Estes que nos tiram o sono, a paz e a razão. Essa anti matéria capaz de aniquilar qualquer luz, qualquer energia. Fossilizando a antes infalível capacidade de sonhar alem dos muros.

Que bizarras criaturas somos nós. Essa desmedida mistura de desejos e medos; Ancora e vela.

O desejo inventa a miragem, daquele que perdido no deserto busca a própria vida. Assim como a saudade inventa sorrisos. Mas não há virtude ou demérito em deixar-se levar pelas miragens.

Talvez haja alguma virtude no equilíbrio, o caminho do meio, como prega o budismo. Essa habilidade de equilibrar-se entre o desejo e o medo sem perder o foco, sem evitar os próximos passos.

Talvez os sonhos sejam o elo entre aquilo que o medo afronta, atando ao que o desejo idealiza. E a freqüência desse sinal se propaga de forma uniforme, é impossível evitá-la.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Sobre Sonhos e Medos

Acho que já escrevi sobre sonhos, e continuo sem entender à sua mecânica de criação. Às vezes tenho sonhos que se repetem durante um tempo e eu também não sei explicar seus motivos. Minha avó sempre tem explicações para os sonhos, sempre diz pra ter cuidado com isso ou aquilo, mas eu sempre entendo isso como um derivado do "leve um casaquinho".

Há algum tempo tenho um sonho que se repete. Às vezes com mais clareza de detalhes, outras vezes são apenas as sensações.

Tudo se passa em uma guerra medieval. Eu sigo à frente de uma pequena armada, não mais que 30 homens. Do outro lado um exercito inteiro com seus escudos e espadas. O meu pequeno exército é pífio perto de todos os outros soldados. Mas são eles que têm medo. Em algum momento lhes falo sobre sermos homens livres. Lembro disso com muita clareza "Hoje morreremos homens livres e nos encontraremos nos jardins de Valhalla".

Depois disso eu não me lembro de outras pessoas lutando comigo. Eu sigo caminhando firme, sempre em frente. Vejo meu reflexo refletido nos escudos dos inimigos. Eu não tenho armadura ou escudo, apenas um machado pequeno. Sinto o chão gelado e a cada passo meus pés afundando no gelo. Ainda assim me sinto mais forte. A imagem refletida nos escudos, a neve se agarrando à barba e o frio congelando os ossos. Mas me sinto cada vez mais forte e mais confiante. A cada passo os escudos tremem e é possível ver o medo nos olhos de cada um. Eu sozinho contra um exercito, mas eles é que sentiam medo.

Sinto-me extasiado, não sou soldado ou rei. Não sou herói, nem um deus, mas sou infalível, imbatível. Eu não sinto medo. Sinto cada músculo do meu corpo, sinto o frio e o vento, mas por mais certa a morte, não sinto medo.

Geralmente acordo quando meus pés não conseguem mais ir adiante no gelo, e quando acordo sempre sinto muito frio.

Não perguntei pra minha avó sobre o significado desses sonhos, mas resolvi escrever sobre isso porque na noite passada ele se repetiu, mas hoje, hoje sinto medo.

Fora do fantástico mundo dos sonhos, escolhi enfrentar exércitos muito maiores e eles não sentem medo do meu machado. Aqui fora, quem sente medo sou eu. Escolhi enfrentar minha maior luta, sem armadura ou escudo e sei que meu inimigo não vai tremer, e disso, sinto medo. Escolhi enfrentar o frio, ignorando o gelo sob meus pés, ignorando as possibilidades que certamente não são favoráveis. E a cada passo sei que sentirei medo.

Mas nada disso fugiu do meu consenso. Meu medo pode me tirar o sono, mas não impediu que eu fizesse minhas próprias escolhas. E eu prefiro acordar por não conseguir mais andar no gelo, do que envelhecer com a sensação de que meu medo não me permitiu correr riscos.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Raízes, Asas e o Próximo Passo

Nos últimos dias, perdi a conta das vezes que fiquei olhando pro nada, imaginando como uma vida toda pode ser desenhada à partir de um sorriso, ou de um passo em falso. Ninguém sabe o que o futuro reserva, ainda assim, é impossível não especular. O homem e essa mania de querer controle sobre tudo, sobre o tempo, sobre o próximo segundo, sobre cada singelo ato de respirar. Mesmo seguindo rumos tão imprevisíveis. Talvez seja exatamente essa a grande sacada, aceitar o caos, aceitar que o próximo passo é só perspectiva e improbabilidade.

Não lembro exatamente o que Lacan diz sobre isso, no meu achismo, sempre imaginei que o desejo é que bestializa o homem.

É inevitável, são tantos sentidos que guiam o homem, é simplista resumir tudo como razão e emoção. De qualquer forma, sei que durante muito tempo me senti caminhando em sentidos opostos. Enquanto a razão buscava enraizar convicções, transformando qualquer subjetividade em fumaça, havia um exército de sentimentos instintivamente buscando os céus, querendo voar em todas as direções ao mesmo tempo.

Mas é impossível ter raízes e ter asas.

As árvores tem raízes, dependem delas. As raízes são o elo vital da árvore, é o que lhes da robustez para suportar qualquer intempérie. O grão germina e antes mesmo de lançar o primeiro broto ao sol, se lança a profundidade do solo agarrando aquele que será seu eterno canto no mundo. Ninguém duvida das convicções de uma arvore em enraizar-se. É pura razão, ainda que curiosamente, não haveria árvore sem polinização, tampouco fruto e semente, não fosse o vento.

Pois é nesse universo invisível que correntes de ar sustentam asas. Sejam asas pequenas de abelhas operárias ou asas potentes rasgando o céu com fúria e liberdade. Não haveria a convicção robusta de um jacarandá, não fosse o clandestino trabalho feito distante do solo, em voo livre. Mas a natureza partilha de uma ironia especial, tornando asas e raízes indispensáveis entre si. Não é possível viver de voo. Não se faz ninho na força do vento e nem é possível alimentar-se de nuvens. E é na convicção das árvores que buscam abrigo as libertinas criaturas aladas.

Nos últimos anos, perdi a conta de quantas vezes desejei ter raízes e ter asas. Quantas vezes busquei acreditar que aquilo que eu mais precisava estava escondido dentro dos meus muros, e que o 'lado de fora' não era mais que uma paisagem antiga e distante da realidade. Que ser racional refletiria em mim a robustez e respeito de um cedro, inerte ao vento e às tempestades. Outras vezes desejei ser vários, e assim ter a liberdade de correr o mundo sem abrir mão de nada, sem a privação que as escolhas impõe. Abdicar de rótulos e conceitos, poder ser livre pra rogar pela fé e argumentar pela ciência sem a preocupação do quão ridículo e infantil isso me faria.

Esse desejo tirou meu sono durante muito tempo. As raízes que eu queria, me dariam segurança enquanto o voo livre me faria frágil, desprotegido. Mas as asas me dariam a liberdade de novos horizontes a cada instante, enquanto as raízes me prenderiam ao constante e imutável.

Talvez exista alguma verdade nisso, o desejo bestializa o homem, mas definitivamente, há muito mais que desejo no que sinto.

Então por ser impossível ter raízes e ter asas, resolvi colocar o pé na estrada. Vezes afoito, vezes cauteloso, mensurar os riscos do próximo passo não é a parte mais importante. O fundamental é ter noção daquilo que te faz bem, um passo adiante e fica no caminho o que faz mal, sem tanto apego à paisagem. Hoje entendo que fechando meus olhos posso encontrar todas as lembranças que preciso para os próximos passos, desenhando tudo que eu quiser, seja à partir de um sorriso encantador ou de um sonho ébrio. Assim eu posso olhar pro nada, imaginando uma vida toda fazendo de conta que tenho as raízes que sempre quis, e no instante seguinte, desvairado, correr e sentir o vento como se eu pudesse voar.

Especular o futuro tem sido mais leve assim, entre versos e cervejas, há mais que gentilezas em minhas palavras, acredite.