segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Qual O Sabor Da Liberdade.???

Se há uma prisão, há de existir um jeito de fugir. Se nos puseram algemas, há de se procurar as chaves. A liberdade é sonho eterno da humanidade e a ilusão é o que nos garante suportar as lacunas. Mas não há pior algema, que aquelas que vendam nossos olhos, que calam nosso grito.

Dizem eles, que nascemos homens livres. Negros; Brancos; Pardos. Somos todos iguais e, livres. Mesmo que nós não saibamos ao certo o que fazer com essa liberdade e que sejamos uns mais iguais que os outros,(como diria Orwell). O mercado, este que abomina o tal monopólio, diz que somos livres pra escolher. O que.? A cor da embalagem talvez. Talvez livres pra escolher qual câncer ira nos pegar, se nos pulmões ou nos rins. Livres pra escolher e seguir uma religião, garantem. Mesmo que a escolha nos leve a fé cega ou a morte pela intolerância. Livres pra professar nossa fé custe o que custar. Ainda que isso custe cada vez mais caro. Sem mencionar o fato de que escolher religião nenhuma, te coloca inevitavelmente na primeira classe do trem rumo ao inferno. Vamos nessa então, ver qual é a do inferno... Afinal, somos livres até pelo tal livre arbítrio, ainda que o pecado esteja sempre em nosso pé.

Gritamos o tempo todo, como se tivéssemos absoluta certeza da liberdade que temos, sem perceber que nós mesmos nos escravizamos, seja por relógios ou por politicagens. Nos escravizamos pelas propagandas de TV e pelo sistema monetário que nós faz trabalhar mais e mais, para alimentar nossa necessidade de comprar mais e mais. E num circulo vicioso, corremos feito hamsters girando as engrenagens de um mundo "livre".

A sociedade repreende e instiga a seguir normas e regras. Limita nossa capacidade de produzir e de expressar qualquer devaneio que fuja do padrão, e chamam isso gloriosamente de LIBERDADE. Aqui nesta terra que chamamos de pátria, democracia é palavra que da orgulho, enchemos a boca pra falar dela como uma conquista infinitamente honrosa. Ahhhh democracia, bela e justa. Ela que nos torna livre pra escolher, mesmo que nos obrigue a votar, que nos OBRIGUE a escolher. A mesma democracia que não nos permite dizer NÃO. Não nos permite dizer NÃO para todos os candidatos disponíveis, pois você é OBRIGADO escolhe entre A ou B. Caso vote nulo ou branco, o voto é excluído da decisão, no final da contagem são tidos como votos inválidos. E só os votos validos escolhem candidatos. Em resumo, você é absolutamente livre pra dizer SIM ou... SIM..!!!

Que linda palavra esta, Liberdade. Assim mesmo com letra maiúscula pra ficar ainda mais envaidecida. Até escreveria ela com letras douradas se o editor de texto me permitisse. Pena que essa linda palavra seja apenas mais um engodo, a piada pronta, tão solene e tão sem graça. Assim como aqueles bolos de padaria, que são bonitos e apetitosos quando vistos pela vitrine, mas que depois que desembolsamos uma grana pra levar um misero pedacinho, descobrimos que não tem gosto nenhum.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Só Migalhas de Um Grande Pensamento

Se as pessoas se comunicassem sem verbalizar, só com a sutil intenção de pensar e compartilhar estes pensamentos, as coisas todas como conhecemos, seriam diferentes. Não sei se melhor ou pior, mas com certeza diferentes. Não haveriam mentiras ou mal entendidos. Nenhum sim soaria como não e nenhum sorriso amigo poderia ser disfarçado. Melancolia alguma se esconderia atrás de gestos e conversa alegre. Cada criatura seria exatamente aquilo que pensa, e de nada adiantaria um novo sapato ou uma marca da moda estampada na camisa, pois nada, absolutamente nada disfarçaria o mais simples pensamento.

Pensar parece coisa simples às vezes. Mas há quem nunca tenha tentado de verdade. Não falo desse pensamento cotidiano, de entrar na padaria e ter de pensar pra escolher se o pão será Frances ou italiano. Falo dessa arte silenciosa de edificar sem matéria alguma, os mais absurdos planos. De construir sem nada palpável, castelos suntuosos de pura insanidade. Pensar... Essa coisa que alguns chamam divagar, ou ser criativo, se questionar ou questionar o mundo. A ferramenta que coloca o homem sempre um passo atrás de sua vontade, tornando assim inevitável, o passo adiante.

Então, se nada dessa comunicação ruidosa que fazemos cantando sons de palavras que muitas vezes não dizem nada. Se nada disso fosse preciso pra que uma criatura entenda exatamente o que se passa com a outra. Assim como funciona nisso que alguns chamam de telepatia, onde basta um pensamento direcionado e feito, lá esta o pensamento pulando de uma cabeça para outra. Pensamentos teriam então pernas longas para pular muito alem do que o mais perfeccionista de todos os piolhos, de cabeça em cabeça as conversas seriam assim sutis, pois não haveria motivos pra gritar, mesmo durante a mais ferrenha briga. E nem mesmo haveria motivos pra calar, pois calado esta, naquele ínfimo e quase eterno instante que precede o choro, ou o beijo.

Pensar seria então tarefa pra lá de simples, assim como escovar os dentes. E a falta desse habito, assim como o de escovar os dentes, seria percebido como falta grave. Da higiene os dentes, da falta de pensar veríamos então mentes apodrecidas e atrofiadas.

Percebam a gravidade... Isso nos livraria pra sempre dessa maldita pergunta que vem sempre escaldante justamente quando não queremos nem na mínima intenção, falar coisa alguma. Pois o silencio é o vinho que melhor harmoniza com mais silencio. E ainda assim, Perguntam sedentos, "Em que estamos pensando?"

Não posso me contentar então, em imaginar que esse devaneio de meia tarde chegue até você que esta lendo nesse exato momento, sem ser o faminto da vez e dizer, o que você esta pensando..??? E não há telepatia no mundo que de conta de fazer com cada um destes pensamentos cheguem até mim. Em todo caso, o silencio de agora é quebrado sutilmente pelo som dos dedos batendo leve no teclado, pra que meus pensamentos verbalizados e convertidos aqui nestes símbolos que chamamos de letras, ultrapassem a barreira da minha caixa craniana, a fim de ganhar vida e ir alem.

Escrevi aqui, em mais de 500 palavras, algo que não se parece exatamente com aquilo que eu havia pensando. Pois o trabalho de procurar a palavra certa que encaixe na frase perfeita, faz com que o pensamento se desfaça em migalhas de um texto que, talvez nenhum de nós entenda de verdade. Pois migalhas de um grande pensamento, nunca serão um pensamento de fato.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A Ciência (Nada) Exata das Listas Imaginarias

Caso fizesse uma lista, assim sem muito compromisso, de tudo que tenho na vida, tudo que posso indubitavelmente chamar de meu. Começaria inventando duas colunas, distintos grupos tão imaginários quanto as linhas de trópicos e meridianos. De um lado, começando sempre com honrosa letra maiúscula, listaria coisas realmente importantes, destas que não cabem em gavetas, em armários ou contêiner. Do outro lado, algum punhado de coisas materiais.

Entre as coisas materiais listaria alguns singelos objetos, mais pela recordação que trazem que pelo valor monetário. Talvez seja isso que chamam de valor sentimental. Em meados de 98 quando sai do meu segundo emprego, depois de 3 anos ralando pra cacete, toda a grana que recebi, gastei desesperadamente em uma loja de instrumentos musicais. Lembro claramente dos itens na nota; Uma pele de bumbo pra bateria, 2 pares de baquetas, um pandeiro meia lua, uma correia para guitarra/violão da Fender, um case bag para violão e um violão Crafter Classic elétrico. De tudo isso, o violão ainda me acompanha. Por varias vezes tentei vende-lo, trocar por outro instrumento ou por qualquer coisa aleatória. Varias pessoas já tocaram com meu violão, amigos e não amigos. E ele continua lá, firme e forte. Mais que um violão, pra mim ele é o símbolo da resistência de um sonho. Hoje eu toco o violão que comprei a mais de 10 anos, e isso me faz feliz de um jeito peculiarmente especial.

Não sou espiritualizado a ponto de me considerar livre do desejo em bens materiais, mas pratico no dia a dia um certo desapego sincero. Tenho prazer em passar adiante todos os livros que já li ou os discos que já não ouço mais. Se em determinado momento encontro-me em situação privilegiada, não me incomodo em dividir a conta de forma desigual ou mesmo de não dividir a conta. E diferente do que pode parecer a quem não me conhece de fato, faço isso por acreditar na sinceridade e na reciprocidade. Já fui acusado por alguns idiotas de tentar comprar as pessoas e isso soa tão patético que entra na minha Ignored List. Mas até consigo compreender que esse desapego às convenções de propriedade e posse, pode assustar algum desavisado que veja cifrões onde eu não vejo nada. Acho até compreensível que nesse universo capitalista ao extremo, qualquer ação que vá contra esse instinto de posse e mais valia, seja confundido com manipulação. Talvez eu me foda um dia, mas sei que não há de faltar um amigo pra dividir (ou não) uma cerveja. Muitos dirão que fracassei, por não ostentar riquezas e bens materiais que encham os olhos, mas a riqueza que procuro é invisível aos olhos.

De tudo que tenho na vida, nessa lista imaginaria com seus trópicos e meridianos, o lado de itens materiais não seria muito longa. O velho Crafter, alguns livros e um par de gaitas de boca. Alguns LPs antigos que ouço raramente, porque a vitrola quebrou. Minha lista não teria mais linhas que o necessário, sem lacunas a serem preenchidas com sonhos de consumo. Sem essa pressão social por carro do ano e casa própria, muito menos pela corrida incansável pelo primeiro milhão. Talvez eu seja um sujeito simples, sem desejos megalomaníacos. Normalmente os meus desejos e planos, envolvem uma condição irrevogável de ter por perto as pessoas que quero bem. Mas se declarar um sujeito simples nos dias de hoje soa como imensa vaidade, e autopromoção me deixa entediado.

Na realidade a lista que me causaria certo orgulho escrever, seria essa de coisas que os olhos nem sempre podem ver e que tampouco cabem no bolso. Nela colocaria o nome de cada amigo, e mesmo que pudesse generalizar e comprimir isso em uma única linha, uma única palavra. Não seria justo pela importância que cada criatura em especifico tem. Listaria todos eles adjetivando aquilo que lhes considero mais valioso, e por certo, valioso a ponto de sobrepor cada defeito que inevitavelmente terão. Listaria uma porção de boas lembranças, porque bem sei o quanto elas podem ser analgésico em momentos difíceis. Criaria uma confusão mental das mais agradáveis ao tentar explicar essa mistura, que não se sabe onde começa nem onde termina, isso que chamamos amizade e família. Não me deteria a critérios genéticos nessa descrição, pois não sei quem é mais família e quem é mais amigo. Como acabei de dizer, criação insólita essa que não se sabe onde começa nem onde termina, mas que vale mais que todo ouro do mundo.

E se assim, descompromissado, tivesse mesmo a idéia de escrever essa lista, por certo desistiria nas primeiras linhas. Pois não há motivos pra listar aquilo que já se tem. Pela pouca importância dos bens materiais, e pela demasiada e justa importância dos valores sentimentais. A vida é curta demais pra ficar contando nos dedos ou nos milhares de caracteres de uma calculadora, tudo nos traz alguma alegria. Alegria se encontra em garrafas de cerveja e em singelos por do sol. Como mensurar isso.??? Bobagem...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Construindo e Derrubando Muros

A grande muralha da China foi construída bem antes da invenção de Cristo, a principio para conter as invasões mongóis, Mais que uma fortaleza que nunca caiu, continua como grande símbolo de imponência e poder de uma China cada vez mais imponente e poderosa. Em Israel, dos restos de um palácio de Herodes, do que dizem ser o local do ultimo pedaço do templo de Salomão, os judeus rezam diante de um grande muro. Para eles o sagrado Muro das Lamentações. Em novembro de 1979 o Pink Floyd lançava seu 10º álbum, The Wall, uma opera rock que contava metaforicamente das barreiras pessoais de um astro do rock em colapso. Dez anos depois, em novembro de 1989, ocorreu a queda do muro de Berlin. O muro que durante tantos anos dividiu o lado oriental e ocidental da mesma Alemanha. O povo foi às ruas comemorar o momento histórico. O simbolismo da queda do muro, vai alem da barreira física que separava famílias e amigos, enfim, que separava iguais. A queda do muro representava um vida nova, o fim da guerra fria, o fim de um confuso período de pós guerra, de conflitos econômicos e sociais, um fim que explanava um novo começo. Um possível grande passo pra uma humanidade mais humana.

Isso talvez prove o que parece ser a natureza humana em construir muros... Bloqueios; Barreiras; Casulos.

Lá fora, constroem-se muros a fim de proteger a propriedade privada. Muros e cercas cada vez mais altas, cercas afiadas ou eletrificadas, a fim de afastar o conturbador fantasma do desconhecido. Do perigo eminente do agressor imaginário, do potencial usurpador que ira agir contra nossa vontade.

Aqui dentro, construímos muros também. Afastando lembranças do passado, que ferem a ferro nosso bem estar presente. Trancamos todas as portas, algumas pra evitar o que fica lá dentro, outras tantas afim de não deixar que entre o que esta fora. Criamos muros que ao mesmo tempo, alimentam e acalmam o monstro de nossa insegurança.

Lá fora, criamos apegos materiais à custa da idéia de que ter é tão importante quanto ser. Ofende-nos profundamente a idéia de que o alheio se aposse de tudo aquilo que a duras penas conquistamos. Fechamos então as portas e janelas, trancamo-nos então em jaulas aquecidas e acarpetadas que por ironia chamamos de lar.

Aqui dentro, construímos cuidadosamente pedra a pedra, tijolo a tijolo nosso solido e intrasponivel muro. E assim em segurança, do lado de dentro inventamos nosso universo particular, nossos santos e nossas divindades. Tudo que nos livre do terrível monstro que mora do lado escuro, no outro lado da nossa fortaleza. E do lado de dentro, reinventamos um útero artificial onde seremos eternamente protegidos.

Pouco a pouco envoltos em muros, os de dentro e os de fora, perdemos a sensibilidade para a REALIDADE que nos cerca. Cegamos ao que pode ou não nos afetar de verdade e perdemos a capacidade de discernir qual lado da navalha é perigoso. E assim sem que ninguém note, ficamos cada ver mais seguros, cegos e sozinhos.

Mas tão humano quanto construir muros é a necessidade de escapar do cruel monstro de olhos verdes e garras afiadas chamado solidão. E em meio a álcool, distração barata e anti depressivos, eventualmente abrimos o pesado portão dos muros da nossa fortaleza pessoal. Se navegar é preciso, correr riscos é fundamental, e assim, vestimos nossa roupa mais bonita para receber o incógnito visitante que adentra laureado a fortaleza em que fundamos nosso reino de sentimentos e emoções. E pela inocente falta de experiência em recepcionar hospedes, cometemos o compreensível erro de não reconhecer se o visitante é hostil ou não.

Escrevi essa crônica, meio milonga, imaginando o que seria se a China tivesse sucumbido aos mongóis, se em Israel, o muro de lá cansasse de tanto lamento e resolvesse se desfazer em poeira..??? Ou se o muro de Berlin ainda tivesse de pé..??? Se a guerra fria continuasse fria ou se esquentasse, ou se Roger Waters nunca tivesse tido tempo de escrever com esmero o The Wall.??? Mas principalmente imaginando esse risco calculado de "abrir os portões da fortaleza" pra este ou aquele curioso visitante. Se vale a pena ficar babando de medo e rancor evitado que qualquer criatura se aproximasse do trono real do ilusório reino que inventamos.

Com certeza mais uma divagação dessas pro hall de perguntas sem resposta, alias, quantas perguntas sem respostas cabem na muralha da China...??? E no lado B do The Wall..??? Não sei responder essa, mas a cada dia coloco uma pedra nova, um tijolo a mais no meu muro de certeza sobre a necessidade humana de criar muros, mas absolutamente, a necessidade de derrubar todo e qualquer muro que seja possível. E os que não forem possíveis por a chão, ao menos tentaremos pular.!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Crônica empoeirada dos Olhos Azuis

Nunca escrevi em diários apesar de ter uma boa memória pra datas e nomes, é engraçado como eles nunca vem em mente ao mesmo tempo. Lembro, por exemplo, do nome de minha primeira bicicleta, uma Caloi Freestyle azul. Mas não lembro o ano em que aprendi a pedalar nela. Se fizer contas e associar esse ou aquele acontecimento, talvez eu chegue a um valor aproximado, 88 ou 89 talvez. De verdade, não sei dizer. Lembro que a bicicleta era originalmente azul e com o tempo, foi pintada de preto. Ao contrario da minha primeira bateria que originalmente era preta e foi pintada de azul. As lembranças são um pouco assim, mudam de lugar, se reinventam, mas continuam as mesmas. Assim como meu primeiro contra baixo era cinza e foi pintado de preto e azul. Seguir viagem, seja remando ou levado pela correnteza. Essas lembranças nunca cansam. É engraçado como a vida parece mesmo uma roda gigante, com todos esses efeitos cíclicos, que vão e voltam, mas sempre deixando um ou outro detalhe em foco nítido.

Naquela época eu não queria ser médico ou astronauta, queria ser o Indiana Jones. Essa era a profissão dos meus sonhos. Nunca tive talento pro futebol e por isso nunca passou pela minha cabeça ser jogador. Nem era tão fã de futebol também, era difícil esse assunto. Eu já torcia pelo Grêmio, o time que veste azul. Na rua onde eu morava todo mundo torcia pro flamengo, e isso era seguro, não contrariar os mais velhos, (intolerância infantil é sempre grave). Em casa a única pessoa que às vezes falava de futebol era minha mãe, colorada. Lembro vagamente de uma camiseta do Flamengo e uma do Inter na gaveta, mas não lembro de ter usado alguma delas. Memória seletiva talvez, ou alguma predileção misteriosa pelo azul.

Lembro da primeira vez que fui seduzido por uma guria, e seus magnéticos olhos azuis. Era o primeiro dia de aula na 1º serie. Ela chegou atrasada, chamava-se Cecília e tinha um olhar que... Que provavelmente não dizia nada. Era só uma criança de 7 anos, assim como eu. Mas eu lembro, sonhei acordado com Cecília durante algum tempo. Na minha inocente ilusão de criança, pensava que um dia casaria com ela e seriamos felizes pra sempre. Mudei de escola e acabei substituindo Cecília por alguma outra guria, de olhos azuis ou não. Crianças têm planos estranhos às vezes e a ingenuidade os torna preciosos tesouros, mesmo que só na memória.

Os olhos azuis de Cecília se desfizeram da minha memória com o tempo, é justo, o tempo é alcalino sobre nossas lembranças de latão, e assim tudo enferruja até se desfazer. A irracional e involuntária preferência pelo azul ficou. Brincando com as lembranças, recordo de um quadro com a imagem de Jesus na parede do quarto de minha avó. Era a imagem definitiva de um cara realmente poderoso, dono da maior multinacional do mundo. Um tipo sério, com cabelo e barba grande e indefectíveis olhos azuis. Talvez essa seja uma associação perigosa pra uma criança, já que por muito tempo associei olhos azuis a um inexplicável poder.

Uma vez me disseram que eu tinha um olhar igual o do Paul. Se não a única, foi a melhor cantada que já recebi. Mas acho que no fundo não foi uma cantada, então melhor deixar pra lá. Na época não entendi o que tinha de especial em ter um "olhar de Paul", se no fundo, quem saiu ganhando foi meu colega que tinha um olhar de Kurt Cobain. Maldito Cobain... Será que havia alguma coisa nele alem dos olhos azuis.? Pra mim parecia injusto imaginar que meu olhar de Paul não fazia frente ao olhos azuis de Kurt Cobain. Era injusto como entrar a cavalo, em uma corrida de super motos.

Há algum tempo rolou uma brincadeira interessante com uma amiga muito especial. O trato era de que escrevêssemos sobre olhos azuis. Eu havia esquecido do trato, lembrei por acaso lendo textos do Gessinger. O trato era escrever algo pra semana seguinte, mas pelo jeito a semana seguinte não seguiu. Quando comecei escrever esta crônica, não tinha em mente o nosso trato de escrever e cumprir o combinado. Não será um trato justo já que ela, provavelmente não escreveu o texto e muito menos saberá que eu escrevi. Acho que mais importante que cumprir tratos, são todas estas lembranças, a clareza de que minha amiga de olhos azuis não tem o poder do Cristo no quadro da minha avó, tão pouco o simbolismo de Gessinger, Sinatra, Kurt Cobain ou de Cecília. Não foi por força ou poder que mantivemos nossos laços por tanto tempo. Talvez sejam só estas lembranças empoeiradas, que em algum momento mágico da vida, resolvemos compartilhar. Mas o tempo é alcalino demais.