terça-feira, 2 de setembro de 2014

Não Pise no Meu Sapato de Veludo Azul

Desde criança tenho uma mania estranha: Não consigo dormir se a cortina não cobrir completamente todas as frestinhas da janela. Lembro exatamente do pavor que eu sentia se entrasse no meu quarto no meio da noite e encontrasse uma fresta mostrando a noite escura lá fora. Era sempre como se tivesse alguém ali me vigiando. O curioso é que nunca tive medo do escuro, o problema era essa ínfima possibilidade de estar sendo observado.

Mais que isso, era como se houvesse uma grande lente de aumento naquela pequena fresta, onde em algum lugar do mundo uma multidão de curiosos me observava. Uma espécie de Truman Show pela fresta da janela.

Apesar de ser filho único, cresci convivendo com a casa cheia de primos. E nessa convivência perdia-se um pouco dos critérios de individualidade. Eu morava com meus avós e tudo que era dos meus avós era também dos seus netos. Na cabeça dos meus tios, tudo que era meu consequentemente era dos meus avós e por isso, também de todos os netos.

Minha casa era uma ilha comunista de brinquedos, onde os visitantes sempre chegavam de mãos abanando.

Enfim, chamem de trauma de infância, mania ou de puro e simples egoísmo, mas hoje pouca coisa tem mais valor no meu mundinho, do que a minha privacidade. Esse é meu sapato de veludo azul e é melhor que ninguém pise nele.

Acho extremamente mesquinha essa necessidade que algumas pessoas têm de observar e calcular cada passo de outra pessoa. Tudo bem que pode parecer uma grande ironia esperar privacidade em um mundo onde deixamos pegadas virtuais por todos os lados. Mas isso não quer dizer que essas pegadas devam ser seguidas o tempo todo.

Relações de qualquer natureza não podem ser díspares, é absolutamente inaceitável que alguém queira saber ao teu respeito, coisas que não pode ou não quer mostrar.

Confesso que o efeito das frestas na cortina não me causa tanto pavor como quando eu era criança. Talvez esse Truman Show da minha cabeça tenha chegado ao fim. Mas cada vez que alguém tenta bisbilhotar por cima dos muros que construí, sinto-me profundamente agredido. E esse é o tipo de agressão que eu não tolero.

No fundo somos todos tão iguais. Iguais como sardinhas dentro de uma lata.

Você não precisa abrir lata por lata para escolher a sardinha que tá lá dentro, é pressuposto que sejam apenas sardinhas. Mas se você insistir em investigar lata por lata, no final, uma simples lata de sardinhas pode te custar caro demais.




Um comentário:

  1. faço minhas as suas palavras... e eh ótimo entrar aqui e ver que você ainda escreve, e que tenho tanta coisa boa ainda pra ler...

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